Texto de Jean-Michel Frodon sobre a Nouvelle Vague

O que significa a expressão “Nouvelle Vague”, na época em que surgiu? E nos dias de hoje?

Jean-Michel Frodon

Gostaria de voltar a abordar a questão do termo “Nouvelle Vague”, tanto para propor uma elucidação dessa designação como para tentar sugerir o que significa hoje a utilização dessa fórmula, o que ela implica no contexto do cinema contemporâneo. A expressão “Nouvelle Vague”, na França e em maiúsculas, foi usada fundamentalmente parra designar três fenômenos distintos, porém que tiveram lugar no mesmo momento, por volta dos anos 1950-60, três fenômenos evidentemente interrelacionados.

A primeira acepção da expressão “Nouvelle Vague” descreve o que hoje chamaríamos de um fenômeno social, ou seja, o advento de um número significativo de jovens diretores que viriam a lançar seus filmes de estreia ao longo desses anos. Entre 1950 e 1958, foram produzidos uma média de 16 filmes de estreia franceses por ano. Durante os quatro anos seguintes, 1959-1962, a média saltou para 33 – mais do que o dobro. Em 1962, a revista Cahiers du Cinéma publica uma lista de “novos cineastas” (nem todos estreantes) que abrange 162 nomes de diretores. Foi a esse fenômeno geracional que o termo “Nouvelle Vague” foi atribuído num primeiro momento. A expressão foi inventada por uma jornalista, Françoise Giroud, para se referir, na edição de 23 de agosto de 1957 da revista L’Express, à entrada em cena de uma nova geração em todos os campos da vida social: novos responsáveis políticos, novos diretores de empresa, novos pesquisadores na área da ciência, novas publicações e personalidades da mídia etc. O grande levantamento publicado naquele momento pela L’Express põe em destaque novas ideias e, sobretudo, um novo estilo, novas mentalidades e novas relações com o mundo, que traduzem globalmente a chegada a postos de comando de uma geração surgida após a Segunda Guerra. Passada a euforia da Libertação da França do jugo nazista, foram na verdade as personalidades da vanguarda que assumiram os comandos do mundo político, econômico e intelectual. Foi preciso ainda cerca de uma década para que os que tinham entre 20 e 30 anos na época Libertação viessem a deixar sua marca na vida pública.

Portanto, a expressão Nouvelle Vague originalmente nada tem a ver com o cinema, estando ao contrário mais relacionada a um estado geral da sociedade, e foi numa referência a esse pano de fundo que a fórmula voltou a ser utilizada em 1958, desta vez aplicada diretamente ao cinema, por Pierre Billard, que na época dirigia a Federação Francesa de Cineclubes e a sua revista Cinéma 58. Pierre Billard leva em consideração esse fenômeno estatístico e seus corolários sociológicos no âmbito específico do cinema. E de fato o fenômeno não se limita à entrada em cena de um número considerável de novos diretores. Estes encarnam atitudes diferentes daquelas dos cineastas que os precederam, seja no que diz respeito à maneira de se vestir, ao tipo de linguagem que adotam, às práticas amorosas, sua relação com a música, a família, a política etc. Finalmente, nessa nova geração de jovens diretores, o que menos muda é a relação estética com o cinema tradicional, com a maneira de fazer filmes. Além disso, a maioria deles se mostrará determinada a reproduzir os modelos clássicos de narrativa, de direção, de montagem, de relacionar imagem e som etc. Farão isso recorrendo – na medida de sua necessidade, mas dentro dessa perspectiva – às modernizações, entre as quais algumas serão de natureza técnica e outras estarão relacionas a “redescobertas estilísticas” de seus colegas mais audaciosos. É fundamental a questão dos efeitos das inovações técnicas, tão atuais em vista dos questionamentos à cultura digital, tema de um verdadeiro revisionismo, que tende a conceder a este aspecto um papel determinante – voltarei a seguir a abordar esse tema.

Surgiu então um fenômeno amplo, sob a denominação largamente aceita na época (a expressão cunhada por Pierre Billard teve enorme sucesso) como “Nouvelle Vague”. A mim pareceria mais apropriado dar a esse fenômeno o nome de “cinema da juventude” – deve-se ressaltar igualmente que se trata quase que exclusivamente de novos diretores, já que nessa época o cinema no mundo inteiro permanece sendo um universo quase exclusivamente masculino, contudo uma jovem fará também sua estreia na época: Agnès Varda, que aliás esteve na vanguarda em relação a todos os demais, já que seu primeiro filme, nitidamente afinado com esse movimento, La Pointe courte, data de 1955. Porém Varda é claramente um caso à parte.

Um grande número de estreantes dessa época acabarão por se tornar os principais diretores do cinema francês dos anos 1960, 1970 e 1980. São eles Philippe de Broca, Edouard Molinaro, Claude Lelouch, Michel Deville, Marcel Camus,  Jacques Deray, Sergio Gobbi, Robert Hossein, Robert Enrico, Jean Girault, Gérard Oury, Pierre Granier-Deferre…

Por que surgiu uma tal safra de novos cineastas? Muitos motivos concorreram para isso. A primeira razão, como foi dito, é o vento de renovação que sopra pelo conjunto da sociedade francesa e que encontra sua manifestação também no âmbito do cinema. Essa evolução nos costumes se manifesta sobretudo pelo fascínio pelos novos modos de comportamento vindos dos Estados Unidos. Porém essa explicação geral não basta para nos fazer entender a amplitude do movimento – há ainda outros motivos, mais específicos. Uma dessas razões é – no sentido mais estrito – política. Trata-se do apoio, mais ou menos discreto, concedido aos jovens cineastas pelo Ministério da Cultura, que acabara de ser criado (em 1958) e posto sob a direção de André Malraux no primeiro governo formado pelo general De Gaulle por ocasião de sua volta ao governo do país. Esse apoio obedece a uma dupla lógica: por um lado, Malraux é guiado por uma verdadeira visão da ação pública no domínio da cultura e para ele – que escrevia já em 1939 em seu “Esboço de uma psicologia do cinema” (Esquisse d’une psychologie du cinéma), texto no qual afirmava de maneira categórica a natureza artística dessa arte, fato na época longe de ser reconhecido – o cinema obviamente faz parte dessa ação. Porém, ao mesmo tempo, apoiar essa geração que entra então em cena significa enfraquecer a antiga, ou seja, a organização corporativa dos profissionais de cinema, organização sob a orientação da CGT, o que implicava em atacar um bastião do Partido Comunista. Essa dupla motivação, apesar de ter ganho fôlego graças a Malraux, não teve início com ele: o cinema só passará para a responsabilidade do Ministério da Cultura em fevereiro de 1959, estando até então associado ao Ministério da Indústria. Contudo, o diretor do Centre National de la Cinématographie de então, Jacques Flaud, já tivera um papel pioneiro nesse sentido ao estimular a juventude, numa ação não isenta de segundas intenções e que se tornará a atitude sistemática de seu sucessor, Michel Fourré-Cormeray, a partir de 1959.

Esse comportamento do estado exerce um poderoso estímulo junto aos produtores, sendo os principais entre eles Georges de Beauregard, Anatole Dauman e Pierre Braunberger, os quais, seja por inclinação estética, seja por uma atitude desafiadora ou por necessidade, oferecem chances aos novos talentos. Eis aí um terceiro motivo: a existência de interlocutores financeiros disponíveis para essa aventura.

A essas causas sociológicas, políticas e econômicas, será preciso acrescentar uma quarta, de ordem cultural. O advento de um grande número de jovens cineastas não pode ser explicado sem um conjunto considerável de práticas e de representações que valorizam o cinema, desde a Ocupação pelos alemães e a Libertação, e que permeiam a sociedade francesa. Esse fenômeno se caracteriza por uma forma intensiva e extensiva. Sua forma intensiva é a participação apaixonada de grupos de jovens reunidos em torno de clubes, de revistas ou de modo informal e para os quais o cinema desempenha um papel essencial na sua existência. O ponto mais óbvio no qual se concentra essa relação passional é a Cinémathèque Française, dirigida por Henri Langlois, a qual constrói com ajuda de algumas dezenas de entusiastas as bases do que logo passaremos a conhecer como cinefilia. Simultaneamente, observamos a forma extensiva dessa espantosa relação da sociedade francesa com o cinema em particular através da extraordinária disseminação dos cineclubes. A cada semana, dezenas de milhares de animadores tomam a palavra diante de centenas de milhares (ou milhões) de espectadores nas salas, por ocasião da projeção de um filme para falar a seu respeito, para analisar suas implicações políticas, morais, artísticas etc. Os partidos políticos, os sindicatos, as igrejas, as associações de todo tipo recorrem ao cinema – até então um lazer popular de massa ao qual não se exigia nada além de duas horas de distração – para fazer dele o ponto de apoio ou ponto de partida de interrogações de todo tipo. No limite entre esses dois fenômenos, intensivos e extensivos, se desenvolve a atividade crítica. Esta se manifesta tanto nas revistas especializadas que se multiplicam, se enfrentam muitas vezes de acordo com as abordagens conflitantes em relação ao cinema e a ideias políticas e artísticas em geral, como nas mídias não especializadas. A cinefilia intensiva fornece os redatores dessa crítica, enquanto a cinefilia extensiva fornece os seus leitores.

Em um texto no mínimo tão importante, ainda que menos célebre, do que “Uma certa tendência do cinema francês” (Une certaine tendance du cinéma français), publicado na revista Arts em 1958 e intitulado “Só a crise salvará o cinema francês” (Seule la crise sauvera le cinéma français), François Truffaut escreve: “É preciso filmar outra coisa, com um outro espírito.” A segunda acepção do termo “Nouvelle Vague”, como que caracterizada por uma dupla ruptura – dos objetos e do olhar – encontra-se assim perfeitamente resumida. Eis aí o segundo sentido da expressão “Nouvelle Vague”, do modo como virá a ser empregada no início dos anos 1960; eis aí sobretudo o acontecimento de maior importância. Existe naturalmente uma genealogia e vários precursores que (retrospectivamente) anunciavam esse acontecimento. Isso não impede que exista uma ruptura, ou seja o advento no universo do cinema de algo ocorrido de um modo irreversível também nas outras artes, o que chamamos de modernidade. Desde o seu nascimento, pela própria natureza de suas características técnicas, o cinema era o portador dessa modernidade como de uma promessa que em várias oportunidades ele procurou tornar realidade, com as vanguardas russas, alemãs e francesas, principalmente dos anos 1920. A modernidade está presente em Welles, em Bresson, mas segue sendo uma hipótese que não se propaga no cinema, será preciso o pano de fundo sociológico e cultural particular que já mencionei para que ela faça sua abrupta entrada em cena no conjunto do campo cinematográfico, como uma pergunta à qual ele terá de responder. E ocorre que vem a ser justamente na França, por volta dos anos 1950-60, que esse fenômeno teve lugar como fenômeno histórico. Existe sempre um sem número de razões para querermos diluir esse momento, assim como vários argumentos para assim proceder, porém então não teríamos como compreender o impacto dessa onda desencadeada na época. Essa onda acabará por varrer não apenas o cinema francês, não apenas o cinema mundial, como também todas as relações associadas aos procedimentos de representação em seu sentido mais amplo, digamos todas as modalidades do “estar-no-mundo” dos 40 anos anteriores, inclusive nos domínios da vida humana mais afastados do cinema. O que surge então e ao que será aplicado a designação de “les nouvelles vagues”, no plural, para designar o conjunto dos movimentos que mobilizam o cinema em vários países do mundo (enquanto em alguns deles são anteriores ao cinema francês) é algo que ainda não chegou ao seu fim.

Podemos encarar sob mais de um sentido o termo “pós-moderno”, porém me parece que em nenhum caso ele vem a significar o fim da modernidade, no sentido em que esta, latente na natureza do cinema desde o seu nascimento, segue eternamente ativo enquanto potencial crítico reivindicado a partir do momento em que ela veio a ser explicitamente posta em prática – no sentido estrito da expressão em francês mise en oeuvre: obras que nascem a partir do seu próprio conceito e fazem sentido enquanto tais. Sem negar nem a importância, nem a qualidade dos filmes incontestavelmente modernos e pioneiros, como A regra do jogo, de Jean Renoir; Cidadão Kane, de Welles; Roma Cidade Aberta, de Rossellini; ou Monika, de Bergman, eles não terão por si só produzido essa deflagração histórica. O que chamam nesse caso de “nouvelle vague”, vem a ser simplesmente o advento histórico do cinema moderno. Em que consiste essa modernidade? Como no âmbito da pintura ao longo da revolução que foi do expressionismo à abstração, como na literatura entre Faulkner, Joyce e Proust; como na poesia entre Rimbaud, Mallarmé e Maiakovski; como na música entre Schoenberg, Prokofiev e o jazz; como no teatro entre Max Reinhardt, Meyerhold e Antoine; como na dança com Diaghilev e Balanchine; trata-se a um só tempo de uma invenção e uma crítica. Invenção da singularidade de seus modos característicos de expressão, que no caso do cinema se determina em face essencialmente à herança do romance (em termos de narrativa), do teatro (em termos de representação). E crítica na prática através de seus próprios meios, ao colocá-los permanentemente em questão, instáveis, nessa montagem extraordinária na qual a modernidade realiza a partir de uma arte e de suas próprias obras pela combinação, de um lado, da crença infinita nos seus próprios recursos e, por outro, da vontade de estar sempre questionando-os.

Falemos agora da terceira acepção da expressão Nouvelle Vague, aquela que acabou por se impor nos nossos dias. Ela designa um dos componentes dessa modernidade, mas não o único. Cineastas como Alain Resnais, Chris Marker, Agnès Varda, Jean Rouch, Armand Gatti e, um pouco mais tarde, Maurice Pialat estão entre os atores essenciais dessa modernidade, mas não simbolizam o que hoje chamamos de Nouvelle Vague. Essa expressão designa na realidade a partir de agora mais especificamente o pequeno grupo de diretores egressos da redação da revista Cahiers du cinéma e que realizam seus primeiros filmes naquele momento. E ainda assim, não todos, mas essencialmente o famoso “Clube dos 5”, Godard, Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette (mas não Doniol-Valcroze ou Pierre Kast, que escrevem também na Cahiers e assinam na época seus primeiros filmes).

Cada um desses cineastas é um caso singular, seus filmes não se parecem entre si – da mesma forma, aliás, que seus textos na Cahiers absolutamente não se confundem. Contudo, no cadinho da revista, com outros que não chegarão a ser diretores, pelo menos não de longas-metragens (Jean Douchet, André S. Labarthe, Michel Delahaye) uma ideia de cinema acabou por se constituir, a qual, assumindo formas cada vez mais pessoais, acabará por se ajustar o cinema produzido por cada um deles. Eles não estão sós, jovens companheiros como Jacques Demy, Jacques Rozier, Jean-Daniel Pollet, em seguida Jean-Marie Straub, depois Jean Eustache, Luc Moullet, mais tarde Philippe Garrel, irão, cada qual segundo seu estilo bastante pessoal, enriquecer essa Nouvelle Vague no sentido imediato do termo, muitas vezes designada apenas pelas iniciais, NV. O que caracteriza essa corrente NV no seio do fenômeno moderno é a tomada em consideração como essencial do dispositivo e da história do cinema. A NV é filha da cinefilia, é nesse cadinho que ela forjou suas armas teóricas e acumulou sua energia criadora, enquanto no mesmo momento outras correntes da modernidade cinematográfica iam beber em fontes diferentes: a influência de outras artes contemporâneas, a das diferentes correntes filosóficas e teóricas (entre as quais a fenomenologia, o estruturalismo, a sociologia, a semiologia…) a construção de uma relação com os acontecimentos sociais e políticos. Formados na escola da Cinémathèque Française no âmbito da crítica de cinema tal como era praticada na Cahiers du Cinéma, ou seja, sob o primado da estética cinematográfica, do questionamento sobre as formas da direção em todos os seus aspectos, sua ideia do cinema segundo a NV se impõe de maneira especialmente definida e espetacular. Essa relação com o cinema, inclusive o clássico, e essa crença nos seus próprios poderes, se traduz na prática pela vontade de sair dos estúdios, do seu mundo artificial e de suas equipes pesadas, que funcionam segundo regras corporativas, sem relação com as necessidades do filme autoral, pela disposição de trabalhar com equipes leves, mudar de atores, falar de histórias que tenham um sentido pessoal, confiar no que o cinema propicia quando o deixam funcionar, registrar a condição do mundo, a beleza de uma jovem, um raio de luz, as mudanças de cor na pele ao sabor das emoções, bem como das evoluções naturais, e sobretudo não ter a pretensão de querer tudo controlar.

O caso de François Truffaut é particularmente interessante. Enquanto crítico da Cahiers du Cinéma, ele nunca deixou de – como seus colegas Godard, Rivette, Rohmer et Chabrol, os que são conhecidos como os Jovens Turcos –  denunciar o academicismo do cinema francês mais respeitado, o dos “grandes cineastas” da época, que trabalham nos estúdios, com roteiristas especializados, numerosos técnicos, e que praticam o que ele chama de modo pejorativo, a “qualidade francesa” (Julien Duvivier, Claude Autant-Lara, Marcel Carné etc.). Em particular, ele atacou violentamente a supremacia do roteiro sobre a direção em um artigo que ficou célebre e publicado em janeiro de 1954, “Uma certa tendência do cinema francês” (Une certaine tendance du cinéma français). A eles, Truffaut vai contrapor o cinema do tipo americano, da forma como era praticado por diretores como Hitchcock, Hawks, Ford ou Minnelli; a precisão do neorrealismo italiano, encarnado sobretudo por Rossellini; porém também a liberdade poética dos filmes de Jean Cocteau ou de Max Ophuls; o rigor de Robert Bresson; a invenção formal de Jacques Tati; a originalidade de Jean-Pierre Melville, ou ainda o gênio puramente cinematográfico de Jean Renoir, todos seus contemporâneos de mais idade, o que prova claramente não se tratar de exclusivamente de um problema de geração. Crítico excelente, Truffaut é o mais em evidência, ou seja, o mais detestado pelo establishment do cinema francês, a ponto de – após sua resenha do Festival de Cannes de 1958 – ele simplesmente ter sua entrada proibida no ano seguinte. Um ano depois, ele volta ali não como crítico, mas como cineasta, com Os incompreendidos (Les 400 Coups) e vive um triunfo. Durante o festival tem lugar uma ampla reunião, conhecida pelo nome de Congrès da La Napoule (vilarejo perto de Cannes) onde se encontram os diretores do que chamei de “cinema da juventude” e os cineastas da modernidade. A mesma edição do Festival de Cannes promove a projeção de outro filme essencial dessa modernidade, Hiroshima meu amor, primeiro longa-metragem de Alain Resnais.

A conjunção dos três fenômenos a princípio confundidos sob a mesma denominação de Nouvelle Vague (o fenômeno geracional, a irrupção ampla da modernidade, a existência de um pequeno grupo bastante ativo, bastante unido, bastante eficaz também quanto à autopromoção) acabará por produzir efeitos gigantescos. A Nouvelle Vague francesa representará em todo o mundo uma referência para uma mudança radical no cinema, no Japão (sobretudo com Oshima, Imamura, Yoshida), assim como nos Estados Unidos (Penn, Cassavetes, Pollack), nos países da Europa do Leste (Forman, Wajda, Jancso), assim como no Brasil (o cinema novo), na Itália (Pasolini, Bertolucci, Bellocchio), como na Alemanha (Fassbinder, Wenders, Herzog). Ela percorre o cinema mundial como uma onda transformadora durante os anos 1960, período marcado por outras transformações planetárias de natureza diferente, mas de abrangência comparável, ligadas a evoluções políticas e que terão como manifestações mais espetaculares as mobilizações contra a Guerra do Vietnã, Maio de 68 e os movimentos alternativos nascidos em parte nos EUA e em parte no Terceiro Mundo.

A partir daqui se coloca a questão da duração do fenômeno da Nouvelle Vague. A conjunção histórica particular não vai durar. Aproximadamente a partir de 1964, os efeitos dos sismos se esgotam, a grande imprensa para de falar do fenômeno, os diretores do “cinema jovem” se aquietam, o fluxo de recém-chegados se reduz. Nesse sentido a Nouvelle Vague é um movimento historicamente datado, circunscrito grosso modo aos anos 1959-1965. Entretanto, há várias razões para acreditar que aquilo que foi desencadeado naquele momento não mais se interrompeu. O primeiro motivo é bastante simples: os jovens cineastas que começam aqui sua carreira não param mais de filmar, os que permanecem vivos continuam ativos. E eles seguem, apesar dos claros indícios de evolução, sempre fiéis ao ímpeto do início das suas carreiras: Godard ainda hoje e – até a sua morte – Rivette, Rohmer, Chabrol seguiram uma trajetória bastante fiel aos seus compromissos de juventude, como também aliás Resnais, Varda, Demy, Marker etc.

O segundo motivo é que essa maneira de fazer cinema não deixou de existir desde então, nem de suscitar vocações; a cada geração surgiram jovens cineastas avançando pelo mesmo caminho, mesmo que – evidentemente – eles o façam à sua maneira. André Téchiné, Chantal Akerman, Benoît Jacquot, Jacques Doillon, Olivier Assayas, Leos Carax, Claire Denis, Arnaud Desplechin, Bruno Dumont, Patricia Mazuy, Bertrand Bonello, Vincent Dieutre, Mathieu Amalric, Alain Guiraudie, Olivier Zabat, Jean-Gabriel Periot…sejam quais forem seus vínculos – admitidos ou não – com a geração anterior, são dignos representantes dessa descendência.

O terceiro motivo é talvez o mais importante e com certeza o mais complicado. Ele se contrapõe e responde à hipótese de uma fossilização desse movimento, do surgimento gradual de um novo academicismo. Afinal, é tentador aplicar à Nouvelle Vague o tratamento que seus fundadores infligiram ao cinema artisticamente dominante na sua época. Trata-se de uma falsa simetria, justamente porque a Nouvelle Vague não é uma escola artística no sentido da implementação de um certo número de modos de disposição de elementos formais. A obra de Rohmer não se parece nem um pouco com a de Godard, que não se parece nem um pouco com a de Truffaut, que nada tem a ver com a de Chabrol e menos ainda com o cinema de Rivette, que não pode ser comparada com a de Resnais no plano dos recursos estilísticos. O que têm em comum se situa em um outro terreno, o que lhe permite não apenas escapar ao academicismo que o ameaçaria como ameaça qualquer tipo de dispositivo normal, mas impedir que a questão se coloque diante da Nouvelle Vague como tendência segura, perene e fecunda do cinema francês. Esse terreno vem a ser precisamente o da modernidade – que não é uma escola entre outras, mas uma ruptura radical e irreversível na história de uma arte, ruptura na relação que essa arte mantém com o mundo e com ela mesma.

Esta ruptura, que poderíamos chamar de perda da inocência, ou de uma passagem à idade adulta de uma arte, leva a uma reformulação problematizada da relação entre o cinema e o mundo real, às ideias, às pulsões, às outras artes e modos de simbolização, à sua própria história passada e presente. Essa reformulação que se dá a cada filme, não tem fim. Essa questão permanece indefinidamente aberta, ela não “passa” e não tem por que passar. Essa questão é, no fundo, a da liberdade: liberdade de inventar seu próprio lugar, liberdade de reformular seus sistemas de representações, capacidade de desempenhar para si mesmo como processo de abertura para os outros, os instrumentos de que dispõe. A questão dos instrumentos é importante, por este termo não me refiro aos instrumentos técnicos, mas aos recursos particulares do cinema, ou seja, à relação entre o tempo e o espaço, o real e o imaginário, ao corpo e às ideias que ele permite. Esses “instrumentos” consistem em meios técnicos e é preciso dizer algo antes de concluir, pois vivemos hoje em dia uma convulsão tecnológica (o que engloba o termo “digital”) que suscita uma série de discursos estéticos mais ou menos justificados. Falou-se muito que a liberdade de realização da NV se devia à aparição de novos instrumentos técnicos, às câmeras mais leves, às películas mais sensíveis e à possibilidade de registrar o som diretamente graças aos novos microfones e novos magnetofones. Isso é historicamente falso: todos os primeiros filmes da modernidade foram rodados com recursos clássicos, mais ou menos improvisados. O que é verdade é que a ideia do cinema exigia essas inovações e que certamente não é um acaso o fato de os técnicos da Beaulieu, da Nagra, da Kodak etc trabalharem com essas técnicas. E de fato, desde que os novos materiais surgiram, os jovens cineastas da NV abraçaram essas inovações. O que significa, tanto na época como hoje, que inovações técnicas podem permitir um grande número de criações novas, porém sob a condição de reencontrar novas ideias.

Ela se caracteriza por uma “insurreição moderna” baseada sobre uma relação com o cinema, como arte clássica infinitamente amada, porém pertencendo a uma história já ocorrida, e como uma experiência pessoal, experiência amorosa e aventura intelectual em sintonia com sua juventude, que nutre uma característica da Nouvelle Vague: a melancolia – que é preciso lembrar (depois de Baudelaire, Benjamin, Agamben e tantos outros) – não é a nostalgia, mas uma relação dinâmica, pessoal e estética com a morte no trabalho como princípio vital.

Essa questão segue indefinidamente aberta, ela “não passa” e nem tem por que passar, ela é e permanecerá necessária à vitalidade de um cinema hoje tão criativo como há 20, 40 ou 70 anos, mesmo que de maneiras diferentes – ou melhor, justamente por causa da maneira diferente. Acrescentemos que, se ela nasceu e se desenvolveu na França num contexto bem particular, ela não é em si mesmo mais francesa do que qualquer outra coisa. O espírito da Nouvelle Vague continua a soprar hoje pelo mundo inteiro. Em especial entre os jovens cineastas asiáticos, mas também entre os latino-americano(a)s, africano(a)s, árabes, que a encarnam de mil maneiras que não poderiam imaginar nem Jean-Luc Godard enquanto filmava À bout de souffle, nem François Truffaut ao filmar 400 Coups. E nesse aspecto eles e elas são precisamente os dignos herdeiro(a)s daqueles diretores.

Como se passou, por exemplo, no evento Journées de Beaune de outubro de 2001, no qual profissionais do universo cinematográfico aplaudiram Claude Lelouch pela afirmação: “Em 1957, a Kodak lançou o filme de 400 asa. Essa revolução será batizada de Nouvelle Vague. Mas eu a considero como uma revolução associada mais à direção de fotografia do que propriamente ao papel de diretor…”